Juros e Câmbio: já temos problemas suficientes

A cautela por parte do Banco Central do Brasil em reduzir a taxa básica SELIC provocou em alguns analistas um sentimento de indignação tanto devido ao cenário deflacionário mundial, causado pela queda dos preços internacionais das commodities, que reduz a inflação  medida  pelo IPCA, quanto pelo colapso do nível de atividade interno devido à crise atual.

A avaliação desta postura do Banco Central requer, antes de tudo, a análise da relação entre a taxa nominal de juros interna e a taxa de referência nos mercados internacionais acrescida do prêmio de risco (também conhecido por risco-país ou risco de default). Este prêmio (ou spread) reflete a avaliação do mercado internacional do risco de interrupção de pagamentos em moeda estrangeira do país (tanto do setor privado quanto do setor público).

O gráfico abaixo mostra o processo de aproximação entre da taxa de juros nominal SELIC à taxa do Federal Reserve ajustada pelo risco Brasil nos últimos anos.

Fonte: Banco Central do Brasil, JP Morgan e Federal Reserve Bank of St. Louis

A diferença entre a taxa interna e externa (ajustada ao risco) determinam a razão entre a taxa de câmbio vigente atualmente nos mercados à vista (spot) e a termo (para entrega no futuro, o chamado mercado futuro). Operações de arbitragem equalizam a diferença da cotação do câmbio spot e futuro ao diferencial de juros acrescido do prêmio de risco. Nessas operações estruturadas, os agentes tomam crédito no exterior aplicam em um papel atrelado ao CDI (certificados de depósitos interbancários), fazendo a conversão pela taxa spot, e simultaneamente fazem um hedge cambial no mercado futuro. Essas operações acabam por promover o que se chama paridade coberta da taxa de juros.

Porém, esta paridade, apesar de obtida por arbitragem, só é válida quando se acrescenta uma medida de prêmio de risco à taxa externa (como a Libor), conforme confirmado em Cieplinski, Braga e Summa (2018).  Esse prêmio, medido seja pelo EMBI+ ou pelo Credit Defaut Swap (CDS), está incorporado no custo de fazer operações em dólar, gerando assim uma medida equivalente ao chamado cupom cambial. Vale observar que em a taxa Libor caminha próxima da taxa estabelecida pelo Federal Reserve enquanto a taxa dos depósitos interbancários (CDI) tem dinâmica bem próxima à da taxa SELIC.

Vale frisar que a paridade coberta define a razão entre as taxas nos dois mercados, mas não a trajetória (ou nível) de cada uma. Para a direção ao longo do tempo, tanto da taxa de câmbio à vista como para entrega futura, deve se adicionar à taxa externa não somente o risco país como também as expectativas de desvalorização do câmbio spot, que define a rentabilidade esperada dos ativos em dólar. É verdade que a autoridade monetária tem autonomia para reduzir a taxa de juros interna abaixo da rentabilidade esperada dos ativos em moeda estrangeira, porém isso torna menos rentável a manutenção de ativos financeiros denominados em Reais do que em moeda estrangeira. Assim, ocorre um processo de saída de capitais de curto prazo do país, não só por parte de estrangeiros, mas também de agentes domésticos, num movimento de alocação de portfólio na moeda estrangeira. Esse movimento tende, se não for compensado por um fluxo cambial positivo na conta corrente e entradas de capital de longo prazo, a levar a desvalorizações do Real enquanto esse diferencial de rentabilidade for negativo. E a situação em geral tende a se agravar porque desvalorizações iniciais, causadas pelo diferencial de rentabilidade negativo, usualmente acabam em parte afetando as expectativas de desvalorizações ulteriores do mercado na mesma direção. Isso aumenta ainda mais o retorno esperado em aplicações em moeda estrangeira, no que pode facilmente se tornar um processo cumulativo desvalorizações cambiais e de saída de capitais (como discutido em Serrano e Summa, 2015).

Nesse sentido, uma política do  Banco Central brasileiro de  reduzir os juros internos abaixo da taxa de juros externa (acrescida do prêmio de risco),  aumentando o retorno relativo de aplicações em dólar, iria adicionar mais um motivo, além do atual movimento global de fuga de capitais dos países periféricos para o dólar, a uma tendência de desvalorização contínua de nossa moeda.[1]

As razões pelo qual o Banco Central brasileiro deveria evitar desvalorizações adicionais da taxa de câmbio nominal, atualmente já desvalorizada em termos reais, mesmo num cenário deflacionário, são tema para um próximo artigo. Mas podemos elencar aqui que a taxa de câmbio não afeta apenas os índices agregados de preços. Desvalorizações cambiais diminuem o poder de compra do rendimento do trabalho e encarecem as importações de insumos intermediários ou finais, inclusive do próprio setor de saúde, historicamente conhecido como um setor cujo custo é dolarizado. Alterações muito substanciais na taxa de câmbio também são motivo de instabilidade financeira e causam problemas patrimoniais para empresas endividadas em dólar.

Historicamente no Brasil o Banco Central operou impondo um diferencial positivo de juros, mesmo acrescentando o prêmio de risco. Observamos que um diferencial de juros interno e externo suficientemente alto em geral provocou um processo de apreciação da taxa de câmbio, exceto em períodos de grande incerteza e de retração geral nos fluxos internacionais de capital. Nestas  ocasiões de forte volatilidade, mesmo uma postura mais conservadora  do Banco Central foi  incapaz, através de aumento dos juros internos, de atrair capital externo o suficiente , tornando inevitáveis  episódios de súbita desvalorização cambial, como ocorreu na crise de 2008, o que confirmamos através de modelos de alternância de regime markovianos em Cieplinski, Braga e Summa (2017).

Esta dinâmica mostra que a hipótese tradicional de paridade descoberta da taxa de juros (presente no modelo do Novo Consenso que supostamente embasa o Regime de Metas de inflação, Romer, 2018) não se sustenta no caso brasileiro. Segundo essa hipótese, se a taxa interna cair abaixo da taxa externa (ajustada a risco) haverá uma única desvalorização cambial (através da saída de capitais) mas que seria acompanhada  de uma expectativa de valorizações subsequentes no mesmo montante do diferencial de juros.[2] Contudo, como vimos, é mais provável que ocorra uma dinâmica de retroalimentação entre a saída de capitais e a expectativa de mais desvalorizações cambiais.

Diferente do padrão histórico brasileiro, a atual situação é singular quando se compara a taxa interna à externa ajustada ao risco-país. No último dado disponível até o fechamento desse artigo (9 de abril de 2020), a Libor USD (1 mês) de 0,81% somado ao EMBI+Brasil de 390 pontos base implica em juros externos de 4,71%, enquanto que somada ao CDS Brasil de 254 pontos base, nos daria 3,35%.

Finalmente, vale notar que, apesar do Brasil possuir um estoque confortável de Reservas Internacionais que permita a autoridade monetária fazer intervenções diretas no mercado de câmbio spot (e valide operações de swap), indicadores da situação das contas  externas apresentaram piora desde a crise internacional do subprime.[3] Mesmo depois de passado o momento mais agudo da incerteza mundial (melhorando a percepção em relação ao câmbio esperado), um diferencial negativo de juros continua exercendo pressão na direção de novas desvalorizações (ver nota de rodapé 1).

Nesse sentido, a cautela por parte do Banco Central em reduzir os juros é plenamente justificável, e é correto continuar tateando e buscando um ajuste fino num cenário mundial incerto, acompanhando a trajetória do prêmio de risco e da condução da política monetária do Federal Reserve, reduzindo a taxa de juros apenas na medida do possível. Na crise da pandemia, já temos problemas suficientes no âmbito interno. As medidas necessárias de proteção à renda e do emprego dependerão fundamentalmente da política fiscal[4] e do papel do Banco Central como emprestador de última instância, incluindo medidas não tradicionais de política monetária. Não há necessidade de acrescentar a esta situação crítica problemas de balança de pagamentos e/ou uma crise cambial.


[1] Naturalmente que o Banco Central pode atenuar esse processo ao fazer intervenções no mercado cambial futuro (por swaps cambiais, onde na prática o Banco Central empresta suas reservas por um período curto) ou à vista (por leilões de linhas, isto é, venda de reservas internacionais com prazo de recompra, ou ainda venda definitiva de reservas internacionais). Algum tipo de controle de capitais (idealmente taxando seletivamente saídas de capital) também seria possível e até desejável, mas politicamente inviável no quadro atual. Um fluxo cambial suficientemente positivo também pode atenuar ou até mudar temporariamente esse movimento. Porém a pressão na direção de novas desvalorizações vai ocorrer em uma nova rodada, enquanto a taxa interna for menor que a externa ajustada ao risco. E a sequência de desvalorizações tende a gerar expectativas de novas desvalorizações, o que aumentaria ainda mais o retorno esperado em dólar.

[2] Esta hipótese supõe que, no curto prazo, o nível de taxa de câmbio esperada no período seguinte é exógeno, não sendo afetada pela evolução recente da taxa câmbio. Além disso, o modelo também considera que no longo prazo a taxa de câmbio nominal tenderá a ser aquela que promove a paridade do poder de compra das moedas: a variação do câmbio nominal esperada e realizada serão iguais ao diferencial de taxas de inflação interna e externa, o que por sua vez levaria o Banco Central a ajustar a taxa de juros nominal à esta diferença. Esse ajuste define a chamada paridade da taxa de juros real (ajustada ao risco). Além de problemáticas do ponto de vista teórico, estas ideias são incompatíveis tanto com as grandes e persistentes diferenças de taxas de juros reais, quanto com os longos períodos de apreciação ou depreciação das taxas de câmbio reais observadas em diversos países.

[3] Desde então, as contas brasileiras voltaram a apresentar déficit em transações corrente. A média da proporção desse saldo em relação às exportações de bens era de 0,08 de 2003 a 2007, período de crescimento acelerado da China, e se tornou -0,25 de 2008 a 2019.

[4] Para análises sobre os limites dos juros como instrumento para recuperar o crescimento no Brasil, antes da crise atual, ver Bastos e Aidar (2020).

Referências

Bastos, C., e Aidar, G. (2020). As limitações da política monetária, Jornal dos Economistas, Corecon-RJ, n.366, fevereiro, 2020.

Cieplinski, A. Braga, J. e Summa, R. (2018). Avaliação empírica do teorema da paridade coberta de juros entre o real brasileiro e o dólar americano (2008-2013), Nova Economia, v.28 n.1 p.213-243.

Cieplinski, A. Braga, J. e Summa, R. (2017). Uma avaliação acerca da falha empírica do teorema da paridade descoberta da taxa de juros entre o Real e o Dólar. Economia e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 2 (60), p. 401-426, ago. 2017.

Romer, D. (2018), ‘Short-run fluctuations,’ Mimeo, University of California, available at: http://elsa.berkeley.edu/~dromer.

Serrano, F. and Summa, R. (2015) Mundell–Fleming without the LM curve: the exogenous interest rate in an open economy* Review of Keynesian Economics, Vol. 3 No. 2, Summer 2015, pp. 248–268

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