Economia apolítica?
Texto publicado originalmente no site da Rede MMT Brasil.
A ciência econômica, hoje denominada de ‘economia’, nasceu como ‘economia política’. Os autores clássicos, como Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, estudavam os aspectos técnicos e os fatores políticos relacionados tanto à dinâmica da produção necessária à reprodução do sistema e do seu excedente econômico, quanto à apropriação deste pelas diferentes classes sociais. A política e as relações de poder de um modo geral eram parte indissociáveis da disciplina que nascia.
Apesar de a economia ser uma ciência social com as mais importantes implicações políticas, ao longo do século XIX – marcado por intensos conflitos sociais – observou-se um movimento de buscar aproximá-la das ciências exatas, usando-se cada vez mais da matemática como ferramenta neste sentido. Este movimento ganhou força com a chamada “revolução marginalista” que, lançando as bases do que viria a ser conhecida como Teoria Neoclássica, se propôs a tratar a economia de forma análoga à física mecânica. Além de se propor uma nova teoria do valor, subjetiva, associada à utilidade, e de se sublinhar o aspecto imparcial das forças do mercado, abandonou-se o corte analítico em classes sociais em favor do individualismo metodológico.
Em um contexto de fortalecimento do movimento trabalhista no mundo, com a intensa atividade anarquistas e comunistas (cuja força seria simbolizada na comuna de Paris), esse aspecto supostamente mais “exato”, “técnico” ou “neutro” da economia concorria para a sustentação ideológica do sistema capitalista. Buscava-se, assim, defender que capitalistas e trabalhadores não compunham classes antagônicas, mas eram indivíduos com os mesmos interesses, complementares, em produzir riquezas, cuja distribuição não dependia do jogo de poder que caracteriza a política, mas respeitaria as leis justas da troca, tão razoáveis quanto a condição de equilíbrio de pesos na mecânica. Era como se a sociedade não fosse mais marcada pelo conflito distributivo entre classes, mas por uma atmosfera harmônica na qual indivíduos seguiam leis impessoais como aquelas observadas na física newtoniana.
A pretensa “neutralidade científica” da economia na realidade escamoteia os interesses favorecidos pelo sistema econômico, apresentando suas consequências sociais como sendo resultados objetivos, necessários, independentes das relações de poder. Assim, busca-se a naturalização de um sistema que é socialmente construído e historicamente determinado. Não por acaso diferentes economistas usam termos como “taxa natural de desemprego”, “taxa natural de juros”, etc.
Como Marx sentenciou, “a economia política só pode continuar a ser uma ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou manifestar-se apenas isoladamente”[1]. Com o acirramento do conflito distributivo observado ao longo do século XIX, tornou-se conveniente realizar essa “revolução” na teoria econômica, cobrindo com um véu de falsa neutralidade cientifica uma ciência social. Buscou-se, assim, a legitimação de um sistema econômico que nitidamente favorece a classe capitalista. A economia política divorciou-se de seu sobrenome sem, no entanto, alterar a natureza do objeto sobre o qual se debruça: a economia capitalista que, apesar de ser social e historicamente construída, se propõe a ser eterna.
[1] A citação, recuperada por Giorgio Lunghini, foi extraída do posfácio da segunda edição alemã do Volume 1 de O Capital.