Uma ponte para o atraso

O futuro, no vocabulário político, representa não apenas uma referência temporal que segue o momento presente, mas incorpora um valor positivo de esperança e superação das falhas e problemas do passado. Não surpreende que o nome do projeto econômico apresentado pelo PMDB como sua credencial para opção política ao governo do PT tenha adotado o termo, como o ponto de chegada de uma “ponte” sobre a profunda crise do presente. O programa tem como sua peça de resistência uma série de propostas para resolver uma suposta “grave crise fiscal” refletida inicialmente no déficit nominal elevado de 2016, que se origina na própria recessão/queda das receitas e elevados juros nominais, e no indicador de dívida bruta. Entretanto, parte do documento é dedicada a identificar problemas estruturais, ou seja, uma tendência de elevação persistente do dispêndio que causaria efeitos negativos sobre a economia no longo prazo. A recente, e verdadeira, tragédia grega exemplifica bem tal situação.

Há um número muito grande de críticas que podem, e devem, ser feitas a vários pontos específicos do texto: a própria escolha dos indicadores déficit nominal e não operacional; a escolha da dívida bruta e não líquida; as hipóteses subjacentes tanto do funcionamento da economia capitalista e de seu processo de acumulação quanto das suposições de política econômica subjacentes às projeções de evolução do gasto, entre outras.

Entretanto, mais além de enumerar tais questões de fundo, ou os aspectos estruturais, há no texto uma ausência de clara distinção entre as políticas de ajuste estrutural e as dificuldades de curto prazo. Em nenhum ponto, claramente, se estabelece que um suposto processo de consolidação fiscal estrutural se sujeitaria à superação da forte recessão corrente. Em outras palavras, não se diz claramente que no curto prazo um processo de consolidação (ajuste) fiscal só jogaria a economia em uma espiral deflacionária com uma deterioração de indicadores de déficit e dívida.

Alinhado com a ortodoxia fiscal o restante das propostas sugerem mais abertura, mais privatização e menos ênfase na integração regional Sul Americana. Assim, as linhas gerais do programa são uma lista de propostas liberais, o que suscitou rápida reação dos críticos sugerindo que a ponte para o futuro mais parece um retorno ao passado dos anos 1990.

Cabe uma observação geral sobre o contexto de tal proposta: definitivamente a segunda década do século XXI não são os anos 1990. Há muito que o neoliberalismo no cenário internacional perdeu seu brilho como modelo inconteste, a única opção racional do famoso acrônimo TINA (there is no alternative – não há alternativa) de Margareth Tatcher.

Exemplos desta rebelião intelectual não faltam.

O economista Piketty lançou em 2013 seu best seller, O Capital no Século XXI, no qual alertava para uma das graves consequências da era neoliberal, inaugurada no mundo nos anos 1980, o crescimento da concentração de renda, especialmente nos EUA. Independentemente dos problemas teóricos do modelo de Piketty, seu extraordinário trabalho empírico revela um fenômeno social grave cujos reflexos atuais na política, tanto dos EUA quanto da Europa, são inquietantes.

Não só os críticos mais à esquerda vêm atacando o outrora intocável dogma neoliberal. Um autor de insuspeitas credenciais ortodoxas como Lawrence Summers acredita que o baixo crescimento mundial recente pode ser caracterizado como uma “estagnação secular”. A explicação é bastante ortodoxa: a existência de uma taxa natural de lucros, que equilibra a poupança e investimento de pleno emprego, muito reduzida que torna a política monetária ineficiente. Entretanto, a consequência de tal suposição em termos de política econômica é muito relevante. Primeiramente, a ineficiência da política monetária implica na necessidade de uma política fiscal expansionista, uma crítica direta às políticas de consolidação fiscal, recentemente aplicadas nos EUA e Europa. Infelizmente, a mesma fé irracional em “fadas da confiança”, que se materializariam em períodos de contracionismo fiscal tornando-os expansionistas, alentou o sonho das políticas iniciais do governo Dilma II, sob o comando de Joaquim Levy, e que acabaram por virar o pior pesadelo da presidenta.

É importante observar que ao definir o problema do crescimento como falta de demanda efetiva, Summers critica as abordagens neoclássicas cujo foco de análise está na questão da oferta, ou seja, na busca da liberdade para a as forças de mercado a fim de garantir o maior crescimento possível. Nesse caso estão as tradicionais “reformas estruturais” que quase sempre incluem uma maior flexibilidade no mercado de trabalho que permita a queda do salário real visando aumentar o emprego.

Para Summers (2015), “Structural reform has been tried for many years in Europe, which is now likely approaching its third recession. It is not even clear that this reform works in the right direction. If supply increases without a concomitant demand increase, deflationary pressure increases.”(p. 63)

Finalmente, outra fonte insuspeita de crítica à ortodoxia neoliberal vem do artigo escrito por economistas do FMI (Ostry, Loungani, Furceri, 2016) no qual reconhecem os problemas para o crescimento de economias de uma conta financeira totalmente desregulada, especificamente no que diz respeito aos fluxos de capital de curto prazo e, assim como Summers, a excessiva fé nos efeitos positivos em consolidações fiscais (políticas contracionistas com o objetivo de reduzir a relação dívida/PIB). Os autores reconhecem que consolidações fiscais levam a maior desemprego e desigualdade. Esta última por sua vez seria um fator, lembrado por Piketty, que reforçaria o baixo crescimento.

Então, por que estaria o Brasil na contramão de representantes mesmo do mainstream? Seria em razão da ponte para o futuro se espelhar num passado de glórias?

Por mais que certos setores da imprensa e dos economistas ortodoxos pretendam pintar a década de 2000 como uma terrível regressão frente a um cenário muito favorável deixado pelos governos do PSDB, os dados não confirmam tal fantasia. A taxa média de crescimento destes dois governos conseguiu ficar em um nível ainda mais baixo que a média do período de crise da dívida e hiperinflação (1982 a 1994). Raras vezes se acumulou tão pouco capital como então: a taxa média de investimento sobre o PIB caindo cerca de 4% utilizando-se a mesma comparação anterior, ou seja, a formação de capital, a criação de nova capacidade produtiva se contrai fortemente no período, e como se sabe é esta nova capacidade que permite a generalização do progresso técnico e os ganhos de produtividade. Não deixa de ser curioso a crítica tão forte dos economistas liberais a um suposto modelo de estímulo ao consumo na primeira década de 2000 quando a formação bruta de capital no período foi superior ao da anterior.

Não surpreende, então, que a taxa média de desemprego em 2002 tenha sido de 11,7%, enquanto a taxa média de 2015, mesmo depois da desastrosa política contracionista recessiva deste ano, foi de 7,1%.

Entretanto, uma volta ao passado levanta outras questões quanto à aposta em um receituário que já não foi bem sucedido.

O projeto de privatização parece sinalizar para a continuação de concessões na área de infraestrutura, o que não representa nenhuma mudança radical com a política corrente. Mais especificamente é quase impossível entender como “privatizações” nas áreas de saneamento, por exemplo, possam contribuir para ganhos de produtividade generalizados da economia. Outra questão nada trivial é entender porque num monopólio natural clássico a propriedade do setor privado traria algum benefício ao consumidor. Não só este é um caso de livro texto para intervenções públicas, como as experiências brasileiras recentes nos serviços públicos privatizados só confirmam uma posição de forte suspeição quanto à “vantagem” na gestão do setor privado.

Também não tendo sido capaz de tornar competitiva internacionalmente a indústria brasileira na década de 1990, a fé na abertura econômica e na integração em blocos liderados pelos EUA terá que enfrentar um novo ambiente internacional, no qual os EUA buscam estender a pressão da abertura para muito além do simples comércio. Esta estratégia incluiria concessões de natureza institucional como a questão de patentes, propriedade intelectual, disputa de contenciosos fora da égide dos estados nacionais e eliminação de preferência para empresas domésticas nas compras públicas.

Ademais, as movidas dos EUA, especificamente o “pivot” para a Ásia, tem, como pano de fundo, disputas geopolíticas com a China e também a Rússia, ou seja, uma adesão a este projeto entraria em confronto direto com o projeto BRICs, no qual poder-se-ia buscar uma inserção internacional mais ativa.

Também na área do petróleo é duvidoso que em meio a uma crise setorial profunda, dada a forte queda dos preços das commodities, haverá grande interesse de investimento em ampliação na prospecção. Por outro lado, um eventual enfraquecimento da Petrobras pode representar o abandono do projeto de desenvolvimento de tecnologia local a partir da expansão do pré sal.

Em resumo, como depositar tanta fé num modelo cuja eficiência e benefício social atemporais vem sendo intelectualmente contestado, não mais apenas por seus críticos tradicionais mas por antigos defensores; cujo passado trouxe resultados para lá de duvidosos na economia brasileira e, principalmente, cuja aplicação no presente sinaliza para um aprofundamento da crise que se estende já por dois anos? Se do futuro retirarmos seu espaço mítico de morada da esperança, somos remetidos a uma trajetória de baixo crescimento, elevação da desigualdade, exacerbação da restrição externa e das tensões sociais urbanas. Como tantos projetos no Brasil que não saíram do papel, esta ponte deveria ser candidata número um ao eterno esquecimento.

 

Referências

Ostry, J.D., Loungani, P. e Furceri, D. (2016) “Neoliberalism: Oversold?” em Finance and Development, Junho p. 38 – 41.

Summers, L. H. (2015). “Demand side secular stagnation”. The American Economic Review, 105(5), 60-65.

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